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  • Foto do escritorRozz Messias

Matizes de Penumbra - texto e ilustração de Roberto Schima

Atualizado: 12 de set. de 2020

Havia aqueles que acreditavam ser o Mal uma coisa palpável, uma entidade com ou sem forma, tão antiga quanto as primeiras luzes a emergir das trevas da Criação. Alguns imaginavam o Mal na forma de um ser chifrudo, cascos e tridente, torturando as almas dos pecadores em um reino de fogo e enxofre através do corredor da eternidade; ou criando ardis para que, em troca da ilusão de benefícios em vida, as pessoas assinassem com sangue um contrato através do qual doavam suas almas: um preço que não parecia ser tão caro assim. Ou, ainda, viam no Mal algo incorpóreo, uma sombra mais escura que a noite, fria, densa, mais aterrorizante do que fitar para o interior de um abismo sem fim, e, por ser sem forma, poderia assumir qualquer coisa entre os piores pesadelos que o subconsciente pudesse gerar, estivesse esse Mal sob a cama ou no fundo do armário cuja porta ficara entreaberta, a espera, a espreita, vigiando. Mas também havia o mal em carne e osso.

A História estava repleta de lastimáveis exemplos. Indivíduos, grupos ou nações inteiras que se dedicaram a fazer sofrer ou massacrar literalmente os mais indefesos, fosse por ganância ou pelo incomensurável anseio de poder. E esse mal, não raro, poderia ser mais amedrontador do qualquer monstro criado pela pena de um escritor ou assombrações de um velho conto de fantasmas.

Os noticiários, habitualmente, regurgitavam doses diárias e generosas de atrocidades. E o terror dos terrores era a banalização em que isso se transformara.


***

"Sombra". Ele acreditava fazer parte disso, do mal real, o pavor em forma de gente.

Esse apelido fora dado pela imprensa a um criminoso desconhecido, extremamente cruel, que não se limitava a assaltar residências, praticando toda a sorte de abusos a quaisquer pessoas inocentes que lá estivessem. Não costumava deixar pistas, exceto uma vez, uma única vez, quando escreveu uma mensagem na parede com o sangue da vítima: "A dor e o terror são os meus alimentos. Sinto fome."

E todas as evidências apontavam para isso. Invadia as residências de classe média alta, burlava seus sistemas de alarme e roubava tudo o que conseguia carregar, demonstrando conhecer pormenorizadamente os detalhes da casa como se fosse um frequentador habitual. Isso fazia dos empregados da família os primeiros suspeitos, senão ativamente, na qualidade de informantes. Geralmente, os moradores encontravam-se fora, viajando, o que só aumentava a desconfiança em relação a alguém muito próximo, talvez algum vizinho. Como poderia saber não ter ninguém na casa?

Entretanto, se acontecia de haver... infeliz dessa pessoa! Os homens, geralmente, encontravam rapidamente o fim. Sombra preferia utilizar uma arma branca por ser silenciosa, porém, como fazia muita sujeira e as possibilidades de deixar rastros eram maiores, se o sujeito fosse mais fraco, apelava para um garrote. Era mais demorado, todavia, tornava a coisa mais íntima, dava-lhe uma satisfação maior sentir a vida da vítima esvair-se lentamente através de suas mãos. Quase podia adivinhar o momento exato em que o coração deixava de bater e o brilho de vida tornar-se opaco nos olhos do desafortunado.

***

Certa feita, um desses homens desfalecera e, antes de concluir o homicídio, Sombra detivera-se. Uma idéia perversa brotara-lhe na mente. Amarrara o desgraçado a uma cadeira, utilizando-se de fios telefônicos e o que mais encontrara pela frente, amordaçara-o e aguardara a pobre criatura voltar a si. Era de madrugada e sabia dispor de tempo. Pelos documentos, Sombra soubera-lhe o nome e profissão: Jaclelson, gerente de um banco famoso. Pusera-se a rir.

— Que raios de nome é esse? - perguntara à vítima.

O infeliz estava aterrorizado demais para responder e, ainda que pudesse, a mordaça não permitiria. Limitara-se a gemer. Seus olhos arregalados rodaram nas órbitas como se quisessem fugir do rosto. Ao mesmo tempo, não conseguiram desprender-se daquela figura: as feições descarnadas meio ocultas pelos cabelos compridos e óculos escuros, o gorro, as luvas. As roupas tão negras quanto a noite a correr do lado de fora de sua casa, numa lentidão de sonho. Um pesadelo do qual não conseguira despertar.

— Seus pais não deviam gostar de você para te batizar desse jeito - prosseguira o criminoso. A voz era rouca, sinistra e divertida... E isso era o mais aterrador. - Jaclelson... Será uma mistura de Jacqueline com Nelson? E rira outra vez.

— Não tem importância... Não tem mais. Tem assediado moralmente os seus funcionários? Ah, eu sei que sim.. Todo gerente faz isso, não faz? Metas! Metas! Metas! Eu também tenho uma meta para você...

Sem pronunciar mais nada. Vagarosamente mostrara a Jaclelson o que tinha em mãos: um saco plástico. Avançara pouco a pouco, permitindo a compreensão destilar-se gota a gota no cérebro de sua vítima. Por fim, quando o alcançara, Jaclelson agitara-se desesperado. Aquilo não podia estar acontecendo! Forçara braços e pernas, o tronco, o corpo todo o mais que pôde. Caira de lado num baque surdo no piso de tacos, batendo a testa. As veias saltaram-lhe do pescoço e das têmporas. A respiração tornara-se ruidosa, ofegante.

Fora tudo inútil. Vira os lábios do outro sorrirem. Fora o sorriso mais medonho e cruel que já testemunhara na vida. Desmentiram o brilho daquele olhar, absolutamente frio. O saco plástico fora-lhe pacientemente enfiado na cabeça e preso ao pescoço com inúmeras voltas de fita adesiva.

Sombra tornara a erguer o gerente e a cadeira, colocara-se diante dele e, através do saco plástico já todo embaçado e aquecido por dentro, observara a lenta agonia do outro, enquanto o ar pouco a pouco lhe faltava e a vida esvaia. O assassino saboreara minuto a minuto, cada arfar suado. O saco enchera e murchara, enchera e murchara, enchera e murchara. E Sombra sussurrara perto do ouvido de Jaclelson:

— Sua meta é sobreviver dez minutos...

Haveria, então, um limite, uma esperança? Jaclelson gerente experiente, apelara a toda a sua frieza profissional para se controlar. Talvez se prendesse a respiração e soltasse devagar, o oxigênio durasse mais. Pensara em Laura, a "japonesinha" que trabalhava de caixa e a qual intimidara a ponto de fazê-la chorar porque o saldo final não batera. Sim, precisava conter-se, ser frio e implacável. No final, quem sabe, teria uma chance contra o crápula a sua frente. Os fios estavam ficando frouxos em seus punhos, não estavam? Sim, controle, controle... CONTROLE! No arrastar de uma eternidade, o gerente ouvira a voz rouca e distante do invasor:

— Dez minutos. Impressionante! Parabéns, Jaclelson, o gerente, atingiu sua meta.

"Sim, a meta, a preciosa meta. Agora, rasgue esse maldito saco!"

Sombra levantara-se. Jaclelson só pudera adivinhar o vulto negro diante de si através do plástico embaçado.

"Sim, corte o saco. Corte essa porcaria de saco!"

Em vez disso, o gerente sentira o fortíssimo impacto de um soco em seu estômago.

— Cansei da brincadeira. Agora que cumpriu a meta, dê-me a satisfação final: mostre-me que sabe morrer.

Toda a sanidade e toda a esperança abandonaram repentinamente o gerente. Fora tomado pelo completo pânico, o terror puro, destilado, espremido de sua alma num líquido viscoso e escuro. O mínimo de oxigênio esgotara-se rapidamente. Não conseguira enxergar mais nada através do plástico molhado. E, finalmente, no derradeiro exalar, a última imagem vislumbrada por Jaclelson fora a da jovem caixa sansei, não mais em prantos, outrossim, sorrindo.

Sombra desfrutara cada segundo. Seu nível de prazer atingira outro patamar. A dor e o terror alimentara-o. Entretanto, fora uma tortura um tanto passiva de sua parte. A falta de ar fora a responsável pela morte do gerente, e não suas mãos. A satisfação não fora completa.

Por isso, sua preferência eram as mulheres, quando podia. Eram mais suscetíveis ao medo, mais frágeis e mais vulneráveis. Regojizava-se nas ondas de pavor que elas geravam. Nutria-se delas. Havia ainda o bônus de uma satisfação pervertida, sexual; o desejo crescente a medida em que suas mãos percorriam cada centímetro quadrado da pele arrepiada da vítima, deliciando-se do calor, da maciez e do tremor antes do inevitável e delicioso fim.

***

O mundo moderno facilitara muito o trabalho de Sombra. A princípio, ele escolhia as suas vítimas em anúncios de jornal. Algumas mulheres eram tão ingênuas que não somente mencionavam o artigo colocado a venda como forneciam o seu endereço. Obviamente, Sombra dava preferência aos bens mais valiosos e fazia campana durante dias nos arredores da casa da vítima a fim de conhecer-lhe os hábitos. Depois, atacava.

Hoje, a coisa facilitara sobremaneira a ponto de tornar-se quase ridícula. Através da Internet, as pessoas compartilhavam fotos pessoais, suas vidas, suas intimidades a quem quisesse ver, ouvir e desfrutar. Pensavam dirigir-se somente a "amigos", todavia, mantinham-se abertas a, literalmente, o mundo todo, a toda sorte de gente, boas e más. E a maldade vivia faminta.

Para o Sombra, navegar pelo computador era como apreciar as vitrines de um shopping center. Mais seletivo, dava preferência a jovens bonitas, de famílias ricas. E não havia limite para o quanto certas garotas desejavam exibir-se e a àquilo que faziam ou possuíam. Colocar no campo de busca algo como "Tour pela minha casa" era um prato cheio, quase um guia turístico. Podia-se ver tudo: elas próprias, seus gostos pessoais, o interior de seu quarto, as outras dependências, seus dados pessoais, até onde moravam - senão diretamente, entrecruzando as informações que a bonequinha ia postando ao longo do tempo.

***

Foi quando Sombra a descobriu. Nas redes sociais, a beldade nórdica exibia a sua coleção de jóias. Era bom demais para ser verdade. Anéis, braceletes, broches, colares e tiaras. E havia pinturas valiosas, ouro e prata.

E ela ia mostrando tudo enquanto passeava pela casa - mansão, melhor dizendo. E Sombra anotava cada detalhe, revisando as fotos e os vídeos diversas vezes. Pausando, ampliando, atento a minúcias, a possíveis alarmes, cães de segurança, pontos de entrada e saída, rotas de fuga. Não obstante, o que chamou-lhe mais a atenção foi a própria futura vítima.

— Como você é saborosa! - sussurrou para si, na obscuridade de seu esconderijo

Passou de leve a língua pelo lábio inferior. E, enquanto ia arquitetando o seu plano, fantasiava todas as diabruras que pretendia fazer a fim de desfrutar cada segundo junto daquela mulher. A mistura de dor e volúpia era tanta que chegava-lhe a arder a virilha.

— Ah, o que seria do bem se não fosse o mal!


***

Era tarde da noite. Sombra, a essa altura, já sabia de cor: ela estaria sozinha. Apesar de jovem, era viúva. Não tinha cães de guarda. Não havia grades nas janelas. Somente o muro alto e uma cerca de arame farpado protegia a residência. Era muita inocência. E hoje, a beldade rica e solitária iria pagar o preço.

O desejo queimava dentro de Sombra. A dor e o terror o alimentava. Estava faminto. A noite descera ruidosamente e, apesar desse contratempo, intimamente, Sombra até agradecera. A chuva significaria nenhuma pessoa na rua. Seria mais fácil cortar o arame farpado e pular o muro num canto escuro, escolhido previamente pela sombra produzida por uma árvore sob a fraca iluminação pública. Uma sombra para o Sombra.

De fato, bastaram poucos movimentos para ele encontrar-se no gramado do enorme quintal da mansão. Percebeu casualmente que a baixa vegetação carecia de cuidados. O temporal caia pesado e, não fosse pela capa, estaria completamente encharcado. Em seus estudos da casa não percebera câmeras, todavia, pelo sim, pelo não, correu rente ao muro, buscando os locais mais escuros.

Somente algumas luzes no interior da mansão estavam acesas, inclusive uma do térreo que ele sabia ser a sala e outra no recinto ao lado, onde ficava a biblioteca e o computador de onde a jovem madame escrevia em seu perfil na Internet.

Aproximou-se sorrateiro da vidraça da sala.

E a viu. Era muito mais bela pessoalmente e usava um negligee branco, bastante fino, que mais revelava do que escondia. Realçava todo o contorno do corpo dela. Estava completamente nua por baixo e a atenção do assassino foi atraída para os diferentes matizes de penumbra sob o tecido - ora esvoaçante, ora colando-se à pele -, principalmente para o detalhes mais escuros. Cerrou as mãos com força para se concentrar.

"Ah, é um presente, um maravilhoso brinquedo com o qual irei me divertir por um longo tempo. Quase me faz lamentar ter de destruí-lo no final."

Em passadas largas, a mulher desapareceu em direção à biblioteca, fechando a porta atrás de si.

Sombra estava excitado, e não havia apenas uma conotação sexual nisso. Era a alegria pura de um sádico a antever os próximos momentos. Reuniu forças e observou a sala mais uma vez. Avistou um quadro de Monet na parede principal. Em um canto obscuro, havia um outro, uma natureza morta de autor desconhecido. Era uma peça ordinária sem qualquer atrativo, exceto pelo fato de ser lá que o falecido marido ocultava o cofre. Agora, guardava as jóias mais preciosas da mulher e muito dinheiro.

"Ao trabalho", pensou consigo. Foi até a varanda e, sob janela da cozinha, então às escuras, retirou sua capa de chuva e escondeu-a atrás de um vaso. Abaixou o seu gorro negro, na verdade uma máscara, e colocou os óculos escuros. Apanhou um cortador de vidro e, cuidadosamente, traçou um círculo. Depois, meteu a mão pelo orifício e destrancou cuidadosamente a janela, entrando na cozinha feito um enorme gato preto.


***

De imediato, notou algo estranho. Um cheiro. Não era forte, mas um odor penetrante, desagradável. Algum alimento estragado talvez. Não seria de admirar. Definitivamente, dotes culinários não aparentavam ser o forte daquela deusa loura.

"Se há uma doméstica durante o dia, precisa de umas palmadas."

Atravessou a cozinha até a divisa da sala. De lá, teve uma boa visão do recinto e, principalmente, da porta da biblioteca - cortesia da jovem viúva ao divulgar um vídeo do tour realizado pelo interior da mansão. Tudo transpirava a luxo e bom gosto.

A mulher continuava na biblioteca e Sombra julgou ouvir um leve som de teclado. Sorriu consigo. Como é que diziam? Mais fácil do que tirar o doce de uma criança...

Nesse caso, porém, o doce era a própria criança.

Tirou a faca da cintura, sua velha amiga de muitas histórias. Essa noite, ganharia mais uma marca em seu cabo.

"Apenas após o divertimento."

Sentiu-se momentaneamente despido ao sair da escuridão da cozinha para a claridade da sala. Caminhou lentamente em direção à biblioteca, ouvidos atentos. Não escutava mais o som do teclado. Todavia, o odor enjoativo não apenas persistia, estava mais forte.

Encontrava-se quase no meio da sala quando, subitamente, um relâmpago clareou todo o gramado e o estrondo do trovão fez as vidraças estremecerem. Todas as luzes se apagaram. Apesar do sobressalto, Sombra achou a escuridão bem-vinda. Era o seu elemento.

Foi dar mais um passo quando algo o atingiu em cheio na nuca, fazendo-o perder a consciência, substituindo uma escuridão por outra.

E uma escuridão mais fria, antiga e profunda que as anteriores principiou-se a tomar forma.

***

Uma rajada de vento rastejara pelo chão. Apesar do vestido longo de seda, ela sentira a friagem subir pelas pernas, arrepiando-a por inteiro. O nevoeiro se agitara no gramado e por entre as árvores, inquieto diante da intrusão.

O que estaria fazendo aquela jovem ali no jardim, naquele horário da madrugada? Para quê a pá em suas mãos? E aqueles sacos pretos, o que seriam? Cada qual trazia um volume, pois, de tão pesado, fora obrigada a dividir em partes...

Árvores sinistras dobraram-se em seu caminho, como se quisessem apanhá-la, tocá-la, profanar a aparente inocência da tez pálida e morna. O coração batera-lhe ligeiro no peito. Podia sentir os mamilos enrijecidos pressionados contra o tecido. Fora quando, perdida entre a excitação e o medo, subitamente, mais sentira do que vira a figura escura formar-se diante de si, moldada pela friagem, pela névoa, pelas sombras e pelas árvores do vasto jardim. Trouxera uma das mãos até os lábios, hipnotizada, a língua úmida prisioneira entre um lamento e um gemido. Mordiscara o lábio inferior, indecisa.

Da escuridão mais além, ainda sem forma definida, a voz feita de muitas vozes ordenara das profundezas:

— Venha...

E, ainda de pé, ela principiara a morrer.


***

Sua vista demorou a habituar-se a escuridão. A cabeça doía como se um ferro em brasa tivesse sido plantado em seu cérebro. Estava deitado no piso da sala. As luzes continuavam apagadas, porém, de algum jeito, conseguia divisar o lustre, a moldura de gesso do teto e, de soslaio, a parede mais próxima. Somente de soslaio, pois não conseguia virar a cabeça.

Não estava amarrado, porém, não se conseguia mexer. Não se encontrava amordaçado e, não obstante, a voz rouca lhe faltava. Agora, o fedor beirava o insuportável. Sentia frio, muito frio.

Num canto do teto, imerso na penumbra, havia uma escuridão. Era diferente de tudo o que Sombra vira ou experimentara na vida. E ele acreditava conhecer as trevas como ninguém. Era a Escuridão com "E" maiúsculo devido a sensação de presença que provocava. E as margens daquele abismo sem forma, denso e impenetrável ondulavam como as batidas de um coração, como... como... se respirasse.

E o Sombra ouviu das sombras:

Despertaste, enfim...

Viu a mulher aproximar-se em seu negligee. Sua voz soara estranha, tanto aguda quanto grave. Diferentes frequências misturaram-se feito um coro de vozes em uníssono. Trazia algo em uma das mãos, perceptível somente através dos contornos: uma serra. Ela era somente um vulto entre vultos.

Mas o Sombra sentiu vir de longe, de lá do fundo de sua alma, daquelas profundezas escuras e silenciosas cuja emoção ele sempre julgara não existir. E apareceu. Emergiu. E, finalmente, o psicopata sentiu aquilo que amava fazer sentir... Medo.

Um horror maior do que nenhuma de suas vítimas jamais sentira, nem no estertor do primeiro passo no vale da morte. A semente primitiva da loucura, da insanidade, do desespero. Germinava. Crescia. Desenvolvia-se. E era gélida, fétida, malevóla e imunda. Tão desapiedada quanto o Sombra em seus piores momentos jamais chegara a ser.

"Misericórdia... O fedor emana da mulher!"

A deusa nórdica abaixou-se e, da penumbra, o Sombra teve a visão daqueles olhos grandes e completamente opacos, sem brilho. Olhos frios. Olhos mortos. E a loucura desvairada dançava ao redor.

E a Escuridão pulsava e pulsava na cadência de seu coração.

E a voz de diversas vozes tornou a falar através dos lábios carnudos e sem vida:

Usamos tu como instrumento. Tua vontade tornou-se a nossa vontade; tua agonia, a nossa alegria; teu desespero eterno, a nossa força e energia. E essa coisa que um dia foi uma mulher tem nos auxiliado muito desde que a colhemos no jardim.

Fez uma pausa. Parecia esperar que o criminoso assimilasse suas palavras. E a voz, muito antiga, continuou:

Inúmeras almas apodrecem sob o gramado, todas como tu, sedentas de riqueza, ódio e prazer carnal, exceto o marido dessa criatura cobiçosa. Pois tu, que te julgas sombra aprenderás sobre a escuridão. Tua carne apodrecerá sob a terra e a tu ser-te-ás negado o privilégio de não o presenciar. A tudo perceberás: o suplício, o odor, os gases, os vermes. E nós nos regozijaremos. Pois a dor e o terror são nossos alimentos. Desde o Princípio sentimos fome. Temos a noite inteira para nos saciar; e tu, a eternidade para desfrutares...

A Escuridão cresceu, aproximou-se envolvendo o Sombra e aquilo que um dia fora uma bela e ambiciosa mulher em um abraço gelado e completamente desprovido de luz.

Vagarosamente, o Sombra sentiu a coisa de cabelos dourados apanhar sua mão. A bile subiu-lhe pela garganta e lá ficou, assim como ficara a sua voz.

E a repulsiva criatura principiou a mutilar o assassino, serrando-lhe lentamente os dedos um a um. Nenhum grito pôde ser emitido. Somente a angústia de uma alma na absoluta insanidade expressava o seu horror.

A Escuridão sorveu o sofrimento como quem saboreava um cálice de vinho.

E a chuva, agora tépida, prosseguiu noite adentro, molhando calidamente o revolvido gramado do jardim.


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