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  • Foto do escritorRozz Messias

A benzedeira - Gisele Wommer

Os anos passaram voando. Eu não lembro exatamente quando foi que começaram a me chamar de dona ou senhora, não me importo, nunca me importei. Só não gosto muito quando passo na rua e ouço as pessoas falando: “Lá vem a velha Judite” ou “Lá vem a velha benzedeira”. Ora, eu não estou tão velha! Não tenho ainda nem 70, está certo que por não me cuidar, posso até parecer ter mais. Mas eu sou assim, como Deus quer. Ando sempre forte e bem de saúde. Isso é o que importa de verdade, é para isso que tantos indivíduos me procuram.

Ultimamente eu tenho evitado sair na rua. Vou ao centro só fazer o necessário, mas quando tenho uns trocados pago algum moleque para fazer serviços de rua para mim. Se posso pedir entrega em casa então, muito melhor. Às vezes acho que vou criar raiz.

Já faz um ano que o padre me desaforou na igreja, na frente da metade da cidade. As pessoas todas viraram o pescoço para trás para me olhar. Lembro das palavras dele: “Maldito o homem que confia no homem”, esta parte está na bíblia, eu pesquisei, mas ele continuou: “Malditas as pessoas que se afastam da fé, do seu Deus e vão atrás dos falsos profetas, daqueles que entram nas igrejas sem credo, dos que prometem bençãos e saúde. Daqueles que benzem e que se acham mais poderosos do que o próprio Deus”. Eu estava sozinha no último banco, com os meus trajes simples porque não tenho roupas boas e fiquei envergonhada com os olhares que recebi. Levantei e fui embora antes da missa terminar sem entender o motivo da minha humilhação.

Eu conhecia o padre há anos, sempre rezou por mim e me abençoou e até a minha casa ele frequentava, mas naquele dia me botou para correr. Pensei em confrontá-lo por dias, mas desisti. Minha fama ficou pior com a morte dele. Juro por Deus que eu não desejei que um caminhão atropelasse o miserável, mas as pessoas preferiram culpar a benzedeira que havia ganhado um sermão na semana anterior do que enxergar que aquele homem era um bêbado, que vivia enchendo a cara e provavelmente ele que havia atropelado o caminhão. Ele não era o único padre que não estava bem resolvido com a vida que escolhera.

As palavras dele naquele dia me entristeceram. Eu sempre fui à missa, gostava de ir à igreja, desde jovem participava de grupos, fiz comunhão e crisma mesmo com minha avó discordando, por ser de outra religião. Nunca entendi o porquê de ele ter se voltado contra a mim daquela forma. A minha avó sempre me advertiu a manter a minha fé somente dentro de casa. Muitos de meus clientes me falavam que a igreja não fazia questão da presença de determinadas pessoas e me contavam algumas coisas que já haviam passado. Hoje eu acredito, e sei que sou uma delas. Parei de ir e ponto final. A verdade é que não me fez falta.

No início, eu pensei que fosse perder muitos clientes. As pessoas mais frequentes pararam de vir aqui. Com a morte do padre eu recebi outro tipo de clientela, alguns cidadãos me procuravam para eu fazer simpatias que afetassem outras pessoas. Eram gente má. Mas isso eu não sabia fazer e não tinha a menor vontade de aprender. Eles foram se decepcionando, indo embora e a minha antiga clientela voltou toda. Creio que só deixaram a poeira abaixar e pararem de ter o meu nome como assunto principal nas rodas de conversa da cidade. Pararam de dizer que eu era má assim como minha avó desde o dia em que fotos nuas da primeira dama com outro rapaz vazaram nas redes sociais, enfim este era um assunto que dava mais pano para a manga do que uma velha solitária.

Muita gente não entende a arte de benzer. Eu repito palavras que aprendi com a minha avó. Em todas as benzeduras eu me concentro, foco no que estou dizendo, peço uma benção e proteção às pessoas que estão necessitando. Peço que elas fiquem boas dos males que as incomodam. Benzeduras evocam santos, não demônios. Eu não sei fazer maldade, minha avó não fazia. Eu benzo para sapinho, quebrante, dor de dente, para acalmar, para hemorragias, para mal olhado e muitos outros males. As pessoas me procuram porque precisam e voltam quando dá certo. Eu sempre acreditava que rogava à Deus por aquelas pessoas, mas o padre de fato me colocou em dúvida, me fez achar que fazia uma coisa muito errada. De qualquer forma eu continuei fazendo porque não sabia realizar outra coisa na vida.

Eu benzo temporais, mas odeio fazer isso. Só faço em caso de muita precisão, quando parece que a ventania vai levantar o telhado do meu humilde chalé ou quando a barulheira dos trovões me assusta muito. Eu tenho medo da chuva, quando saio para benzer é o dia de encarar os meus temores. O maior erro da minha vida foi sair de noite para benzer a chuva, a minha avó sempre dizia que de noite não se benze, nunca. A noite que ela contrariou o próprio saber e saiu para benzer à noite foi a última da sua vida.

Do que eu me lembro, a chuva foi a primeira benzedura que eu aprendi, dizem que não se ensina ninguém a benzer, quem ensina perde o poder. A minha avó não me ensinou, mas deixou que eu aprendesse. De tanto andar atrás dela, ouvir as palavras que ela pronunciava em alto e bom som eu aprendi sem me dar conta. Só tive certeza de que eu sabia quando ela morreu, e as pessoas vieram até mim desesperadas para eu seguisse o trabalho dela. Eu me sentei e fui repetindo palavra por palavra, uma melodia quase cantarolada, na mesma entonação de voz. Às vezes eu já não sabia mais se eu era a Judite ou a velha Santa. Eu havia me transformado nela.

O que eu não contava para ninguém é que seguido eu a via dentro de casa, sentada no sofá. Eu podia sentir o cheiro do cigarro dela nos cômodos da nossa pequena casa. Às vezes eu estava jantando e ela vinha do quarto, se sentava na mesa ao meu lado. Eu não tinha medo, apenas dizia “oi, vó Santa”, ela sorria e sumia, mas nunca me respondeu. A minha avó se foi mas nunca me abandonou de verdade.

Ela era ótima benzedeira, fazia um bem danado às pessoas, sempre era procurada, benzia até rua afora quando saía para fazer alguma coisa. Uma noite armou um temporal forte demais, ela pegou o machado e saiu morro acima. Eu fui atrás. Eu ia dizer para ela que após o pôr do sol não se devia benzer mais, mas a chuva era tanta que creio que ela abriu uma exceção. E saiu dizendo: “São Pedro, São Simão. Com a chave dos seus trovão. Manda essa chuva para bem longe, não deixa nem rastro de menina e nem sinal de cristão…” Eu podia jurar que no céu, entre as nuvens pretas, enxergava silhuetas de homens, um deles com uma grande chave na mão. Na época eu achei que estava vendo São Pedro, aquele que, rezava as lendas, além de senhor do tempo, portava a chave do céu e decidia quem merecia entrar ou não. Hoje eu acho que vi mesmo um demônio, zombando da reza da minha avó. Ela levantou o machado naquele ato simbólico de cortar a tormenta e foi atingida por um raio que fez uma corrente elétrica fortíssima lhe derrubar, já sem vida, no chão.

Já se passaram tantos anos e eu ainda acordo com o último grito abafado dela, lembro dos lábios inchados e manchados de sangue que se estamparam de repente em seu rosto. Quando chove eu lembro daquela noite que passei encharcada e com medo, no alto do morro, com o corpo da minha avó, rezando para São Pedro abrir a porta do céu para a única pessoa que eu tinha no mundo. Nunca vi uma tormenta que tenha custado mais a passar, eu achei que ia morrer lá no alto daquele morro. Quando amanheceu eu estava sozinha, não só ali, mas no mundo. A morte da vó Santa decretou a minha solidão.

Eu até saio para benzer a chuva, mas com um machado jamais. Faço o sinal da cruz e tremo ao dizer as palavras, elas me trazem lágrimas nos olhos. Prefiro a reza para Santa Clara, não aquela que ceifou a vida da minha avó. Na noite que saí, senti um arrepio da porta da casa até o local em campo aberto onde eu estava. Comecei a proferir as palavras: “Santa Clara pequenina, se vestiu e se calçou…” E depois vi uma mulher. Santa Clara e Santa Bárbara são mencionadas nas benzeduras para tempestades, mas aquela mulher parada ao longe, de vestido preto que voava ao vento e os dentes tão pretos quanto os cabelos, não era santa nenhuma. Era uma entidade zombeteira e me colocava medo. Apareceu para mim por uma semana, todas as noites, ria uma gargalhada infernal. Eu rezei tudo o que eu sabia, mas a presença dela continuava forte e me causando desconfortos.

Uma noite estava na janela observando ela, que estava parada há mais de meia hora, olhando alguma coisa no canto da minha casa, sem se mexer ou mudar de lugar. Levei um susto quando a dona Santa parou ao meu lado e disse: “Isso não é nada bom”.

Eu me obriguei a ir até a biblioteca da cidade. Em livros antigos encontrei algumas orações para afastar espíritos. Fiz todas elas junto com um ritual um tanto macabro para purificar a minha casa. Coloquei proteção com ramos em todas as entradas, portas e janelas. Não abri mais nem as cortinas à noite. Até achei que eu estava protegida, mas seguidamente quando benzo crianças, elas ficam olhando para todos os lados na minha casa. Uma delas até já apontou para fora e disse: “titia”. Elas estavam vendo uma mulher. Eu era uma benzedeira assombrada e com medo. Deveria ser a primeira no mundo todo.

Se eu metia medo nas pessoas na rua, ou incomodava o padre, a minha avó era muito pior. Ela não entrava em igrejas e gostava de assustar criancinhas rua afora. Dizia-se na pequena cidade que a velha Santa tinha um pacto com o capeta e que tinha um caramunhão dentro de uma garrafa. Ela não tinha pacto algum, se tinha este pequeno demônio eu nunca vi. Mas ela de santa só tinha o nome. Sabia fazer muitas coisas obscuras, apesar de não fazer. Um dia me convidou para criar um caramunhão, já que as pessoas a acusavam, ela queria ter um. Os ingredientes eram fáceis: ovos de galinha preta, dois olhos de gato preto, cuspe de uma virgem e depois era só enterrar no lugar certo e deixar o tempo necessário. Eu nunca deixei a minha avó arrancar os olhos de um gato. Ainda não tenho coragem.

Às vezes me pego olhando para a minha casa, a que herdei da minha avó. Um chalé velho e horroroso, com cheiro de velharia e mofo, torto para o lado esquerdo, com a pintura das tábuas que um dia já foram azuis escuras, completamente desbotada. A frente e as laterais da casa eram adornadas de muitos pés de alecrim, arruda e guiné, que eu usava sempre para benzer. Já dizia a minha avó que benzer sem os ramos volta o mal da pessoa contra o benzedor, mas aquela plantação tornava a minha casa mais feia ainda.

A única coisa certa é que qualquer dia desses essa choupana vai cair. Eu não tenho recurso algum para arrumar, benzer é uma atividade sem fins lucrativos, as pessoas vêm aqui e me dão o que querem, os móveis de dentro de casa quase todos foram ganhados. Tem gente que me dá cestas básicas, roupas. Uma alma caridosa já me ajudou com o telhado que estava velho, vou torcer para que alguma me ajude com o restante da casa.

Eu poderia ter feito qualquer outra coisa da minha vida, mas não tenho certeza de que a minha avó me deixou qualquer outra possibilidade. Por ora, já não sei se ela me ensinou ou mesmo me condenou a esta vida tão dificultosa. Eu poderia ser bem mais feliz, eu poderia não ser tão sozinha.

O meu chalé, na periferia, quase isolado entre a mata, não combina nem um pouco com os carrões estacionados na frente dele, praticamente o dia todo. Eu tenho uma clientela maior do que a da minha avó. Depois que os jovens começaram a aparecer com estes celulares que não desgrudam nunca, achei que ninguém iria me procurar para benzer mais nada, que eles mesmos procurariam benzeduras na internet ou que não acreditavam mais, mas me enganei, tem gente sempre precisando de ajuda, de uma orientação, de uma bênção e eu gosto de poder ajudar.

O que me preocupa é que tudo que eu aprendi com a minha avó, tudo que desenvolvi durante anos, benzer com ramos; brasas; agulhas; sal; tesouras… tudo vai ficar obsoleto, esquecido. As pessoas não vão poder procurar ajuda se não souberem quem pode ajudar. O meu saber morrerá comigo. Se ninguém mais aprender a benzer, será o fim das benzedeiras em um futuro próximo. Apesar de eu achar que fui condenada a esta vida, era uma verdadeira tristeza tanto conhecimento, que deve vir acompanhando muitas gerações, se acabar.

Certa noite, quando uma super lua cheia adornava o céu, ouvi barulhos à porta do meu humilde chalé. Fiquei assustada, pelos olhares que vinha recebendo na rua, era possível que viesse a sofrer algum ataque. O barulho parou. Mais tarde ouvi ruídos como se fosse um gato miando. Me encorajei e abri a porta da frente. Em uma caixa de papelão, havia um bebê chorando. Foi um susto. Alguém havia deixado um bebê na minha porta.

Era uma menina, por dias eu não sabia o que fazer. Quando me dei conta já estava chamando-a de Luna. Fui até o cartório e insisti para registrá-la. Falei que eu havia parido em casa sozinha. Quem poderia dizer que não, apesar da minha idade? Uma moça no cartório me devia um favor, saí de lá com a minha filha registrada. Ela poderia frequentar escola e ter uma vida normal, ou quase normal.

Criar Luna completou o vazio que eu tinha na minha vida. As pessoas que iam até a minha casa não faziam pergunta alguma. Eu tinha uma filha agora, o problema era meu. Eu comecei a me perguntar se também não havia sido deixada na porta da dona Santa algum dia. Eu tinha um nome de uma mulher na minha certidão, mas a minha avó só me disse uma vez que ela morreu, nunca mencionou quando e nem como foi.

Luna crescia rápido. Aprendeu a falar tão logo aprendeu a caminhar. Os meus clientes passaram a ser mais generosos nas doações, tudo corria bem. Eu estava dando uma vida boa à minha filha, mas também a estava condenando, assim como minha avó havia feito comigo. Com dez anos Luna já benzia bebês para quebrante e pessoas para acalmar, essa ia ser das boas, provavelmente mais forte e mais poderosa do que eu ou minha avó. Pesquisava, aprendia coisas novas.

— Meu glorioso Santo Antônio de Guimé — ela dizia enquanto fazia o sinal da cruz.

— De Guiné, minha querida. — Eu corrigia.

Estava ensinando Luna, claramente. Havia algumas ocasiões em que o benzedor poderia ensinar as suas benzeduras: véspera de Natal, dia de todos os santos, na sexta-feira mais longa do ano ou quando sentia que sua morte se aproximava.



Gisele Wommer é gaúcha, professora e escritora. Tem a literatura por rotina, seja lendo ou se dedicando a contos e romances, a maioria na temática dark. É autora de Ao Cair da Neblina e tem contos publicados em quinze antologias. Palestra em escolas visando formar leitores.


Instagram: @giselefwommer





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